quinta-feira, 4 de outubro de 2012

CRONICAS CAIÇARAS -

Paulo Barreiros
Crónicas caiçaras
Com o intuito de fotografar garças com proximidade, um destes dias fui até um rio nas imediações de uma lota de peixe. Tive algumas oportunidades fotográficas interessantes e aproveitei a maioria delas. Nisto surge de rompante um garoto de uns 15 anos, obeso, com uma expressão imbecil. Ele se divertia espantando as aves, correndo atrás delas e tentando chutá-las antes que levantassem vôo. Eu admoestei-o educadamente, mas com firmeza. Ele, que era extremamente mimado e certamente não deveria estar acostumado a ser repreendido, olhou para mim num misto de ódio e temor. Depois, na troca de mensagens tácitas, virou-se para a sua mãe, que aguardava por ali, enviando-lhe um olhar que era tanto inquisidor como um pedido de proteção. A mulher, bem “pirua”, fez-lhe um gesto de anuência acompanhado de uma expressão furibunda. Aí o garoto me olhou desafiadoramente e voltou à carga, molestando as aves e a mim. Eu voltei a pedir que parasse, mas, desta feita, já não pedi <>; porém, não recorri a ameaças nem a palavrões ofensivos. Previsivelmente, a mulher investiu contra mim gritando impropérios (chegou mesmo a ser doloroso para os meus tímpanos!) e me empurrando. Apesar da sua pose de “madame”, era mal educada que só visto! O cerne da sua argumentação foi que o seu filho <>(sic)! (nisto o garoto, que estava encostado às costas da mãe, aproveitou para me dizer: <>...) Acrescentou que eu poderia ensinar o que quisesse aos <> (sic) dos meus filhos, mas que não me poderia dirigir ao seu filho porque ela tinha mãe para o proteger. E finalizou dizendo que eu nem tinha o direito de chamar o filhinho dela (que já tinha o meu tamanho) de <>(sic)!
Afinal, a lei de proteção ao menor não serve apenas para bandidos mirins e flavelados cometerem crimes impunemente...
Irritado e enojado, parti. Mas regressei a esse local umas semanas depois.
O mercado de peixe é separado das traseiras de numerosos restaurantes, botecos e peixarias por um rio que encontra o mar a uns 200 metros dali.
A maré estava baixa e faltava pouco para o ocaso. A essa hora a lota há muito que fechara e quase ninguém circulava por ali. Posicionei-me sobre umas das pequenas pontes para pedestres e ciclistas, me esforçando por segurar a comida no estômago, pois era agredido por um fedor pungente. Lá em baixo, garças e urubus alimentavam-se dos restos de peixe e outras porcarias que quase todos os comércios daquele bairro arrojam direta e constantemente no rio – mas negam essa evidências às autoridades que parecem padecer de cegueira e anosmia, ou totalmente absentistas/negligentes. Mal tinha tirado umas fotos quando apareceu um jovem com uma expressão de energúmeno, vestido como um funkeiro na praia. Tudo na sua linguagem corporal denunciava o abuso de drogas. Próximo de mim, sentou-se num muro ao lado da ponte, onde uns arbustos o protegiam dos eventuais olhares indiscretos provenientes da rua principal, do outro lado do rio. Logo jogou a sua lata de cerveja na água, me fitando desafiadoramente. Eu evitei o contacto visual com ele, mas fiquei atento, pois temia que ele pudesse tentar me assaltar. Seguidamente, ele pegou numa pedra e arrojou-a sobre o núcleo principal de aves onde eu assestava a minha câmara, provocando uma debandada. Na verdade, ele queria era que eu me fosse embora, a fim de poder fumar crack tranquilamente. E resultou, pois fê-lo sem demoras, enquanto eu me afastava.) Fui para outra ponte, mais próxima das casas de pasto.
Com total desprezo pelas leis ambientais e pela saúde pública, pela janela de um popular restaurante (recomendado até pela revista de maior circulação no Brasil, influenciando grandemente a classe média com prolixas mentiras e o seu desprezível posicionamento bem à direita do espectro político), alguém despejava restos de peixe diretamente no rio, como é habitual. (Sendo um domingo, as probabilidades de serem pegos em flagrante por autoridades ambientais ou sanitárias, eram quase nulas.) um elevado número de garças, urubus e gaivotas foi atraído para esse festim pantagruélico. Tal frenesim alimentício me oferecia boas oportunidades fotográficas. (Ei, não sejam expeditos em me julgar como hipócrita; é óbvio que eu não acho que boas fotos sejam uma justificativa para compactuar com a transformação de um rio em esgoto!) O dono do referido restaurante estava à janela, junto com um empregado e um par de clientes. Olharam para mim, sorrindo com malícia apedeuta. Logo o dono se retirou do meu raio de visão, regressando de seguida. Trazia na mão um objecto pequeno (impossível de identificar, à distância que eu me encontrava) que provocou uma grande excitação nos seus comparsas. Não demorei a perceber porquê... O tipo atirou um petardo/rojão (não era uma bombinha de carnaval) bem no meio das aves a menos de 3 metros baixo dele! A explosão foi forte, arrancando até penas das aves fugindo apavoradas. Algumas tinham um vôo errático, entontecidas, denunciando problemas de equilíbrio devido à explosão. Até eu, que estava a uns 30 metros de distância, fiquei com dores de ouvido – imaginem as aves!
Atravessando o zunido que se apoderou momentaneamente do meu cérebro, apenas consegui escutar as gargalhadas dos filhos-da-puta. Um deles, o empregado, até veio fumar um cigarro para junto de mim e da minha namorada, para melhor curtir o efeito da sacanagem que acabara de ser cúmplice ativo. Os nossos insultos apenas deram mote a mais risadas de escárnio. Puxa, como deve ser divertido provocar maus tratos aos animais apenas para prejudicar os turistas... e isto que eles têm um negócio que vive essencialmente do turismo, assim como toda a cidade praieira (que nem rede de esgotos possui, pois tal não dá votos...).
Naquele momento deveríamos ter chamado a polícia, mas há muito que se apossou de nós a desilusão sobre a impunidade das autoridades que ferem este país.
No dia seguinte relatámos o ocorrido a um amigo grande entusiasta da ornitologia e que trabalha num órgão de fiscalização ambiental ligado à prefeitura. Ele ficou indignadíssimo e prometeu tomar providências.
Volvidos um par de dias, encontrámo-lo de novo. Ele nos contou que se dirigiu pessoalmente ao restaurante alvo das nossas acusações, e falou com o dono. Este último admitiu a cagada (sic), mostrando medo das conseqüências (financeiras). No final, tudo se resumiu a um “puxão de orelhas” informal, acompanhado de promessas de não reincidência dos prevaricadores. (Ficamos de olho nisso!) Viva os brandos costumes dos que cultivam a cortesia e acreditam que o ser humano é essencialmente bom...
Entretanto, diariamente no mercado supracitado podemos ver índios (alguns deles são mulatos que de “índios” apenas têm tatuagens alusivas, mas, a bem da verdade, “etnia” é um conceito mais cultural do que genético) vendendo palmito e orquídeas silvestres – o que é ilegal. São pobres e só cometem tais crimes ambientais porque abundam compradores entre a classe média maioritariamente hostil aos índios e a qualquer estilo de vida alternativo à depredação capitalista.
Até já cheguei a escutar uma piruona (falsa loira, como sempre acontece no Brasil – cuja população de “loiras”, tanto em números totais como per capita, deve ser superior à da Suécia) pedir a um dos índios para lhe arranjar – subtraído à mata - um pássaro bem colorido destinado à gaiola, enquanto comprava umas mudas de orquídeas silvestres. (O índio anuiu, pedindo o n.o de telemóvel/celular da cliente, asseverando contactá-la logo que capturasse a ave desejada. Ele até perguntou se podia ser um sabiá, mas a “madame” declinou a oferta, enfatizando que tinha que ser um bem colorido...) Cadê o IBAMA e a FUNAI?!
Por toda a cidade, sobretudo nos bairros periféricos, os caiçaras exibem para os transeuntes as suas aves engaioladas. A maioria delas é “protegida por lei”. Algumas, poucas, até estão anilhadas com a chancela do IBAMA que torna os criminosos em “fiéis depositários”, espalhando o mau exemplo. A polícia ambiental abstem-se de fazer a sua obrigação. Pior, uma fonte fidedigna até nos avisou que tais agentes de autoridade não raras vezes acabam por revelar aos prevaricadores (parentada e amigos) a identidade dos denunciadores.
Em qualquer loja que venda rações para animais, podemos encontrar várias marcas cujas embalagens anunciam (textualmente e pictograficamente) misturas especiais para espécies de aves que supostamente é proibido ter em cativeiro. Procurando nessas prateleiras, não raras vezes estão à disposição dos clientes artefatos de captura ilegal de aves e até tesouras especiais para cortar as penas de vôo desses animais desgraçados.
Volvida uma semana, eis-me de volta. Desta feita avancei até ao local onde o rio se abre para o mar. O meu principal intuito era fotografar biguás/corvos-marinhos capturando enguias. Mal me tinha posicionado onde a luz e a distância permitiam tirar o melhor proveito do meu modesto equipamento, um catador de papel, empurrando o seu carrinho, surgiu na ponte sob a qual eu estava. Ele parou e começou a atirar para a água resmas (certamente Kg) de papel! (porque raios se dera, então, ao trabalho de o recolher, se era para lhe dar esse ignominioso fim?!) Eu reclamei alto. A voz da minha companheira (que estava mais próxima da ponte) sobrepôs-se à minha, mas foi uníssono o nosso grito: <>
Uns velhos pescadores, que sempre perambulam por ali, mandaram-nos calar a boca argumentando que <> (sic)... Pois, então as enormes manchas de diesel e de óleo queimado que eu amiúde vejo saír de onde têm os barcos atracados serão o tempero dos peixes?!...
Um desses pescadores, na primeira vez que me viu rondando o porto empunhando a minha câmara fotográfica, disse-me que os biguás são os responsáveis pela escassez de pesca. Tamanho absurdo nada traz de novo. Por todo o planeta, onde há pescadores (humanos), excesso de pesca e poluição, os homens do mar e os ribeirinhos colocam a culpa nos animais que eles consideram competidores. Pois, as toneladas de peixe que os tipos matam inutilmente e jogam no mar – muitos dos quais servem de alimento aos biguás – tampouco contam...
A falta de higiene e de consciência ambiental, assim como a superstição e os preconceitos têm como principais raízes o desrespeito e o analfabetismo científico.
Mas em nada se pode censurar os caiçaras porque <>; <> ;<> (especialmente porque adoram queimar o lixo diariamente?!....);<>;<>; <<>>; blá, blá, blá,... Pseudoargumetos deste calibre fartei-me de escutar dos orgulhosos e xenófobos pantaneiros. Pensando bem, escutei essas merdas em todas as (muitas) biorregiões que vivi mundo afora. Nos anos aurorais do meu engajamento ecologista fui muito mais sensível a tais reivindicações xenófobas, de um ostracismo deletério e hipócrita que ainda é apelativo tanto para líderes dessas comunidades à caça de subsídios (sem terem que dar à sociedade contribuinte contas de como gastam esse dinheiro) , como para alguns eco-românticos urbanos e filhinhos-de-papai. Os “puro-sangue telúricos” também tratam como estrangeiros os outros autóctones, seus conterrâneos, que têm opiniões diferentes.
Como se não bastasse uns quantos caçadores furtivos e palmiteiros daqui controlarem algumas das melhores trilhas para a observação de aves e a fruição de magníficas cachoeiras. Esses bandidos ameaçam – e cumprem! – disparar contra os que ousem adentrar nos “seus domínios” quando eles estão a depredar a mata, o que acontece com demasiada freqüência. Assim impedem que uma porção bem maior da população caiçara possa usufruir dos ganhos pecuniários e ambientais que o ecoturismo pode proporcionar.
Eu sigo aprendendo a sobreviver na terra dos papagaios, mas é difícil...
PB

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