sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Façamos de 2010 um Feliz Ano Novo. Podemos fazê-lo!

por Rafael Bán Jacobsen



> Sendo um físico teórico, um dos meus instrumentos de trabalho mais preciosos
> é a matemática. Por isso, com o tempo, apaixonei-me pelos números e, cada
> vez mais, enxergo neles uma beleza ímpar. Há ocasiões em que quase chego a
> duvidar de que sou um físico legítimo, pois a matemática envolvida nos
> problemas de pesquisa às vezes me fascina muito mais do que as questões
> físicas em si. Ao acompanharem meus trabalhos, alguns colegas, em tom de
> galhofa, dizem: “Olha, só posso parabenizá-lo por ter entrado para o time
> dos matemáticos puros.” Outros, mais austeros, aconselham: “Acho que você
> deveria perder menos tempo com a matemática e mais tempo com a física.” Mas
> eu sou teimoso e ainda acho que uma equação fala mais do que três bilhões e
> meio de palavras. A beleza dos números me seduz.
>
> Todavia, sou um caso quase isolado: a maioria das pessoas detesta lidar com
> números, torce o nariz para fórmulas, sofre engulhos só de ver um gráfico.
> Mas sigo convicto da verdadeira maravilha que os números representam. Não é
> fantástico perceber, embora não se saiba a razão, que qualquer número par
> pode ser escrito como a soma de dois números primos? Não é simplesmente de
> cair o queixo que uma mesma proporção esteja presente em fenômenos tão
> distintos quanto a multiplicação de indivíduos nas sucessivas gerações de um
> casal de coelhos e também em diversas medidas do corpo humano (a altura
> total e a medida do umbigo até o chão; a altura do crânio e a medida da
> mandíbula até o alto da cabeça; a medida da cintura até a cabeça e o tamanho
> do tórax; etc.)? Ou, mais fundamentalmente, não é desconcertante o fato de
> que um mesmo conjunto de símbolos, uma mesma construção lógica, que é a
> matemática, sirva bem a propósitos tão prosaicos quanto contar conchinhas na
> beira da praia mas também nos permita calcular há quantos bilhões de anos
> nosso universo existe?
>
> Sim, os números estão repletos de beleza, mas também podem ser extremamente
> cruéis. Há contextos em que a beleza dos números se esvazia por completo;
> então, a matemática já não é capaz de provocar qualquer sensação de enlevo.
> Ao contrário, nesses casos, a matemática torna-se capaz de trazer à tona
> tudo que há de pior em nós, seres humanos: a desesperança, a revolta, o
> ódio. Os números que descrevem o holocausto animal constituem um desses
> casos.
>
> Em 2003, com base nas estatísticas da FAO (Food and Agriculture Organization
> of the United Nations) sobre agricultura, o Secretariado da União
> Vegetariana Europeia, apresentou o número de animais mortos no mundo para
> consumo humano durante aquele ano. Os números foram estabelecidos a partir
> de relatórios provenientes de mais de 210 países, mas devemos levar em conta
> que alguns países e territórios não fornecem dados. Os números foram os
> seguintes:
>
> - Galinhas e frangos: 45 bilhões e 900 milhões
>
> - Patos: 2 bilhões e 260 milhões
>
> - Porcos: 1 bilhão e 240 milhões
>
> - Coelhos: 857 milhões
>
> - Perus: 691 milhões
>,
> - Gansos: 533 milhões
>
> - Carneiros, ovelhas, cordeiros: 515 milhões
>
> - Cabras: 345 milhões
>
> - Bois, vacas, vitelos: 292 milhões
>
> - Roedores: 65 milhões
>
> - Pombos e outras aves: 63 milhões
>
> - Búfalos: 23 milhões
>
> - Cavalos: 4 milhões
>
> - Asnos, mulas, machos: 3 milhões
>
> - Camelos e outros camelídeos: 2 milhões
>
> A matéria do Centro Vegetariano* sobre o tema alerta ainda que a soma de
> todos esses números fornece um total de mais de 50 bilhões de animais, sem
> ter em conta os animais aquáticos (peixes e crustáceos). Os números
> referem-se apenas aos animais abatidos nos matadouros. Excluem-se os animais
> de criação extensiva (geralmente para consumo doméstico), assim como os que
> são alvo da caça, difíceis de contabilizar por não haver qualquer tipo de
> controle. Certamente não estão incluídos nos números os desafortunados
> animais assassinados em rituais religiosos e tampouco os cães e gatos
> exterminados em sua globalizada Auschwitz particular, os famosos centros de
> controle de zoonoses. De tudo isso, só podemos depreender que a realidade é
> muito pior.
>
> Diante desses números, toda beleza se esvai, escorre feito o sangue dos
> inocentes animais mortos em nome de nossos vícios e de nossa ganância,
> restando, então, a carcaça exangue do puro horror. São dados antigos, mas
> basta olhar ao redor para perceber que as coisas não podem ter melhorado (e,
> nesse caso, mesmo que os números caíssem pela metade, a chacina ainda teria
> dimensões dantescas).
>
> Em um trabalho publicado em 2001, Luiz Antonio Pinazza, redator de pecuária
> e política agrícola da Revista Agroanalysis**, da Fundação Getúlio Vargas,
> joga um balde de água fria no otimismo vegetariano:
>
> *A formulação das tendências de consumo é investigada pelo The International
> Food Policy Research Institute (IFPRI), seguindo um modelo alimentar mundial
> em que se incluem dados originários de 37 países e grupos de países e 18
> produtos. Conhecido como Impact (International Model for Policy Analysis of
> Agricultural Consumption), o cenário do início dos anos 90 até 2020 prevê um
> aumento do consumo da carne e do leite de respectivamente 1,8 e 3,3% nos
> países em vias de desenvolvimento e de 0,6 e 0,2% nos países desenvolvidos.
> Ou seja, até 2020, em toneladas métricas, os países em vias de
> desenvolvimento consumirão mais 100 milhões de toneladas de carne e mais 223
> milhões de leite. *
>
> Resumo da ópera: o número de animais mortos só vem crescendo e vai crescer
> ainda mais. Se, em 2003, as estatísticas mais modestas apontavam 50 bilhões
> de vítimas, hoje, no final de 2009, estamos, certamente, encerrando um ano
> em que tal número foi superado e vamos receber, de braços abertos, um novo
> ano em que, mais uma vez, o recorde será batido. Ano novo, vida nova?
> Infelizmente, penso que não: ano novo, velhos números; ano novo, idênticas
> atrocidades. Um interessante testemunho do século XIX pode ajudar a ilustrar
> a constância do banho de sangue em que vivemos imersos.
>
> O romancista russo Leon Tolstói (1828-1910), por sua vez, levou a cabo a
> experiência à qual a maior parte de nós se recusa, aquela mesma experiência
> considerada pelo filósofo escocês John Oswald (1760-1793) como um alerta à
> sensibilidade natural do homem: Tolstói visitou um matadouro. O escritor,
> bem como qualquer vegetariano de qualquer outra época, estava acostumado a
> viver em uma sociedade erigida sobre a exploração animal. Já ouvira todas as
> razões antigas e conhecidas pelas quais, supostamente, matar animais para
> comer é aceitável e até natural, coisas como “Deus permite”, ou “todo mundo
> faz assim”. A respeito disso, escreveu ele:
>
> *Não existe mau cheiro, som, monstruosidade aos quais o homem não consiga se
> acostumar a ponto de deixar de ver, escutar e cheirar a aparência, o som e o
> odor do mal.*
>
> Tal convicção reforçou-se ainda mais com sua visita ao matadouro, descrita
> por ele nas seguintes palavras:
>
> *(…) na longa sala, já impregnada com o cheiro de sangue, só havia dois
> açougueiros. Um soprava a perna de um carneiro morto e batia no estômago
> inchado com a mão; o outro, um rapaz de avental emplastado de sangue, fumava
> um cigarro torto. (…) Depois de mim entrou um homem, aparentemente um
> ex-soldado, trazendo um jovem carneiro de um ano, preto com uma marca branca
> no pescoço, de patas amarradas. Este animal ele o pôs sobre uma das mesas,
> como se numa cama. O soldado velho saudou os açougueiros, que evidentemente
> conhecia, e começou a perguntar quando o seu patrão lhes permitia ir embora.
> O camarada com o cigarro aproximou-se com o facão, afiou-o na borda da mesa
> e respondeu que estavam de folga nos feriados. O carneiro vivo estava ali
> deitado, tão silencioso quanto o morto e inflado, a não ser por sacudir
> nervosamente o rabo curto e os lados a se alçarem com mais rapidez que de
> costume. O soldado baixou gentilmente, sem esforço, a cabeça levantada; o
> açougueiro, sem parar de conversar, agarrou com a mão esquerda a cabeça do
> carneiro e cortou-lhe a garganta. O animal tremeu, e o rabinho endureceu e
> parou de abanar. O camarada, enquanto esperava o sangue correr, começou a
> reacender o seu cigarro, que se apagara. O sangue corria, e o carneiro
> começou a agonizar. A conversa continuou sem a mínima interrupção. Era
> horrivelmente revoltante. *
>
> Para nós, hoje, seria um alívio (ainda que um alívio questionável) descobrir
> que os matadouros de agora são menos “revoltantes” do que aquele que Tolstói
> descreve. A verdade é bem outra. A frieza com que os animais são mortos é
> exatamente a mesma. São diferentes apenas duas coisas: hoje, os animais são
> mortos em escala industrial, no que poderíamos de chamar de verdadeiras
> “linhas de desmontagem”, que contam com as mais bizarras tecnologias
> (esteiras com ganchos para suspender as vítimas, serras elétricas, tonéis de
> escalda etc.); além disso, os matadouros não param mais nos feriados –
> funcionam noite e dia, ininterruptamente, para atender a imensa e crescente
> demanda por carne. O que mudou, em suma, foram os números, muito mais
> grandiloquentes do que seria capaz de imaginar o mais megalomaníaco dos
> genocidas.
>
> Abro uma revista que assino e que acabo de receber em casa, uma publicação
> da comunidade judaica, e encontro mais uma matéria sobre os horrores
> perpetrados pelos nazistas durante a Segunda Guerra. Descubro que, apesar de
> o número exato de pessoas exterminadas pelos nazistas nos campos de
> concentração ainda ser objeto de pesquisa e debate, as estimativas mais
> avantajadas apontam para 3.5 milhões de poloneses não-judeus, 3.5 milhões de
> poloneses judeus, 2.5 milhões de judeus de outras nacionalidades, 6 milhões
> de civis eslavos, 4 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, 1.5
> milhões de dissidentes políticos, 800 000 ciganos, 300 000 deficientes, 25
> 000 homossexuais, 5 000 Testemunhas de Jeová, fornecendo um total de 22 130
> 000 pessoas (sim, mais de 22 milhões). Faço mais um rápido cálculo mental e
> começo a rir: esse número representa mirrados 0,04% em comparação com os
> tais de 50 bilhões de animais mortos a cada ano. Súbito, a imensa tragédia
> do holocausto adquire contornos de brincadeira de criança. Olho para a
> televisão e vejo uma repórter alarmada informar que, apesar da constante
> queda nos números, mais de 2 milhões de pessoas ainda morrem em decorrência
> da AIDS todos os anos. Faço uma ágil regra-de-três, descubro que esse número
> – 2 milhões – é o número de animais oficialmente assassinados em apenas 20
> minutos e caio na gargalhada. Aprimorando o ensaiado olhar de luto, a
> repórter passa à nova manchete, a qual ela própria define como “uma
> carnificina”: 38 mortos no feriado de Natal nas estradas federais de Minas
> Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Recuso-me a fazer qualquer conta sobre
> isso; naquele momento, a notícia soa-me completamente ridícula, algo que nem
> merece ser computado.
>
> Como disse, em certos casos, a matemática torna-se capaz de trazer à tona
> tudo que há de pior em nós, seres humanos, inclusive a frieza perante a
> desgraça. É quase impossível não ser sufocado por tal número – 50 bilhões!
> –, frente ao qual todas as misérias humanas parecem ínfimas, desprezíveis,
> negligenciáveis, assim como aqueles centésimos e milésimos após a vírgula
> que são dispensados quando, em um problema matemático, enunciamos a resposta
> final. Não acho bonito, não é isso o que desejo, mas a frieza dos números
> toma conta de mim. Viro um cubo de gelo. Insensível.
>
> É claro que a maneira mais decente de encarar esses funestos eventos, a
> matança de animais humanos e não-humanos, é pensar sobre o drama individual,
> sobre a experiência dolorosa de cada um deles, sobre a tortura física e
> mental que cada qual, intimamente, teve de suportar antes da morte. Quando
> resumimos (ou ocultamos) tudo isso através de números, deixamos de lado a
> real dimensão do drama e corremos o risco da insensibilização. É, de fato,
> uma pena que sejamos obrigados a conviver com estatísticas tão berrantes e
> macabras. E é ainda mais lastimável que, ao que tudo indica, essas
> estatísticas, no ano que se inicia, venham a ser ainda mais berrantes e mais
> macabras. Recuso-me, portanto, a festejar mais um ciclo de matança que se
> inicia. Enquanto todos estiverem fazendo a tradicional contagem regressiva
> para a chegada do novo ano, permanecerei calado. Minha contagem particular
> começará à meia-noite em ponto: um, dois, três, quatro, cinco… e vou
> contabilizando, em tempo real, os animais mortos nesse recém-nascido 2010.
> Mas a matemática, nessas horas, é implacável, e eu logo descubro ser
> impossível a tarefa: são mais de 38 000 assassinatos a cada segundo.
>
> Ao redor do mundo, o ano já se inicia com a tétrica ceia, repleta de corpos
> chamuscados sobre as mesas, modesto prenúncio de tudo que está por vir.
> Paradoxalmente, as pessoas desejam paz umas às outras, com as bocas cheias
> de nacos de carne. Tenho vontade de repreendê-las, “Tirem o cadáver da boca
> para falar!”, mas fico quieto. Penso novamente em Tolstói, que há muito já
> alertava sobre quão vãos serão todos nossos anseios de paz enquanto a
> violência fizer parte de nossos atos corriqueiros. Dizia ele: “Enquanto
> houver matadouros, haverá campos de guerra”. Haverá mesmo.
>
> Mais uma vez, os galináceos se salvarão, afinal ciscam para trás e,
> portanto, não é de bom agouro devorá-los em noite re réveillon; os porcos,
> no entanto, fuçam para a frente, e, por isso, tornam-se os defuntos mais
> cobiçados. O leitão da ceia é apenas um infeliz que se adiantou às
> estatísticas. Enquanto o porco fuça para a frente, fica para trás, bem para
> trás, perdendo-se na poeira da distância, qualquer sinal de escrúpulo ético.
>
>
> Um novo ano se anuncia. Vai começar tudo de novo...

Ops, aqui termina o que diz o autor do texto acima. No entanto, tenho boas notícias: Tudo isso pode ser mudado e com melhorias para nossa saúde física, emocional, social, etc. Clique aqui e leia as boas notícias que escreví há muito...

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