domingo, 15 de março de 2009

UMA FESTA DE ALFABETIZAÇÃO


UMA FESTA DE ALFABETIZAÇAO
Kátia Regina Coutinho
Mais uma história qualquer, de uma festa qualquer?
Não...uma história sim, de uma festa sim...igual a tantas festas por este Brasil afora, mas não uma festa qualquer. A história de uma festa que faz o Brasil cá de baixo pensar.
A história nasce no Alfabetização Solidária, projeto em que trabalho em minha universidade há muitos anos. Atualmente minha atuação é como coordenadora responsável pela alfabetização de jovens e adultos em um pequeno município do interior do Estado de Alagoas. Nem Zona do Agreste pura, nem Sertão declarado ainda.
É para este lugar pequenininho, cuja área urbana fica como que incrustada na terra, agarrando-se fortemente a um pequeno morro da região. que eu viajava quase todos os meses para acompanhar o andamento do Programa, das salas de aula, da atuação dos alfabetizadores, dos responsáveis no município e, principalmente, de como anda a aprendizagem e a vida daqueles a quem nos propomos ensinar a ler, a escrever e a melhor viver, quem nos dera, depois de poderem transmitir e receber os recados da vida com as próprias mãos e olhos!
O município tem cerca de cinco mil (5000) habitantes, quase todos da zona rural e os alunos da alfabetização de adultos, na sua esmagadora maioria, são moradores espalhados pela bonita área rural do município, cercados especialmente por plantações de fumo, de milho e feijão (aquele chamado "de corda" que a gente do Sul e do Sudeste, inveja e importa). São trabalhadores da roça, gente simples e bonita, que dá valor a cada ato do seu dia como se fosse o ato mais importante de toda sua vida.
Eles têm, no caso deste município, entre 16 e 86 anos, todos vividos ali mesmo, na terra que eles cultivam e da qual comem o feijão, o milho, a macaxeira (para nós, sulistas, a mandioca), a manga, a jaca, fazem o cuscuz e o mungunzá, a canjica ou o velho e bom curau e a pamonha.
Todo semestre matriculam-se novos alunos para as classes montadas, na esperança que os que começaram a alfabetizar-se no que os alunos chamam de "Solidária", migrem para a Educação de Jovens e Adultos do município e aí continuem seus estudos.
O que acontece em todos os finais de semestre é uma tristeza muito grande, sentida por eles e repartida conosco da Universidade. Isto porque grupos que se formam e constituem-se como aliados numa guerra difícil que é o analfabetismo, separam-se em alguns meses e dispersam-se como grupo em outras salas, quando não abandonam de vez a escola e a esperança de aprender. Nem chega a parecer absurdo este abandono quando conhecemos as condições de algumas salas de aula cuja iluminação, em muitas delas, é feita com lampião a gás. O percurso até a escola onde estao instaladas as salas é feito a pé em regiões inóspitas e a volta, já com escuridão total no meio do mato ou do nada, não é lá muito convidativa. Mesmo assim, com os olhos e a vida cansada, eles perseguem o sonho da libertação dos olhos e das mãos dos outros para lerem e escreverem sozinhos. E fazem festa quando lá chegamos.
Desta vez a festa foi organizada por três dos alfabetizadores que juntaram muitos dos seus e dos alunos de outras classes e nos fizeram uma surpresa de fim de semestre. Juntar neste caso significa juntar vontade e juntar dinheiro.
No penúltimo dia de nossa estada no município, um dos professores me avisou que teríamos uma festa na escola dele naquela noite e que eu era a convidada especial. Disse ainda ele com olhos espertos e brilhantes: "A senhora vai ver, vai ter um monte de coisas de comer e de falar." E lá fomos nós participar da festa com eles.
A chegada na escola foi interessante pois além dos alunos esperando dentro da escola, estavam também os filhos, os netos, esposos tanto dos alunos quanto dos professores e amigos, todos curiosos, pensava eu. O que eu só descobri mais tarde é que não eram grupos separados. Nossos professores alfabetizam também seus pais, seus avós, seus maridos, suas mulheres. Não é raro uma mesma sala ter mãe, o pai, os irmãos mais velhos, os avós, todos da família de nosso alfabetizador que conseguiu ir mais longe nos estudos.
E os demais da família, se não são alunos, são acompanhantes sérios do trabalho desenvolvido na comunidade e partícipes da festa. Os comentários mostram que eles acompanham o trabalho, torcem pelos que conseguem e choram pelos que desistem.
Depois das apresentações, re-apresentaçoes (alguns desses alunos tínhamos visto apenas uma vez no Módulo todos, visto que nem sempre conseguimos visitar todas as salas da zona rural em uma só visita), vistas em cadernos, conversas sobre o curso e sobre seu final, chega a hora que me pareceu a mais esperada pelos que nos convidaram. Um professor me avisa que vão servir o que prepararam e eu, entre incrédula e emocionada, vejo-os entrar com o "monte de coisas".
Os alunos vão para a lousa junto com o respectivo professor que escreve em letras grandes: "OBRIGADO'.....e cada um de seus alunos escreve embaixo..."José, Cícera, Raimundo, Antonio, José, Josefa, Rosa, Delina, Adelson, Bertolina, Josean, Jailton, Luzia, Marleide, Nelzete, Rosineide, Everaldo, Umbelino, Bernardo, Cláudio Manuel, Serafim, das Dores, Mercedes, Carmo, Domingas, Clara, Maria do Roque, Dorotéia, Salestino, Antonia...e aí vão sendo escritos na pequena lousa de uma pequena escola de um sítiozinho de Alagoas...nomes do Brasil que nem sempre o Brasil conhece!
Eu nem lia direito os nomes nem via os rostos dos donos dos nomes com clareza porque realmente as minhas lágrimas impediam...sou chorona mesmo, mas aquela hora valeu cada lágrima e cada tentativa de leitura a mais de cada um dos nomes ali colocados. Foi um momento de agradecimento e de emoção.
Não bastasse isso, em seguida veio a comida...
Um bolo de milho (feito com o milho plantado e colhido por eles) coberto com o que me pareceu ser goiabada derretida em água - uma combinação que eu nunca tinha visto e que revelou-se para mim como manjar dos deuses naquela hora. Junto a um pequeno pedaço de bolo repartido (quase que milagrosamente pois o bolo me parecia pequeno no começo), eu os vi servir brigadeiros e um biscoito de leite. Mas não pensem que eram bandejas de brigadeiros ou de biscoitos distribuídos amplamente pelas pessoas em pratinhos separados.
Era um pedaço de bolo, um brigadeiro e um pequeno biscoito para cada um de nós. Para beber, serviram café quente pois mesmo lá no interior do Nordeste, as noites de inverno são mais frias que o calor do resto do ano mais seco para eles.
Eu, acostumada as festas de meus filhos, onde muito se estraga do que se faz para comer, nem sei se comportei-me direito tal a emoção ao vê-los tão felizes, tão satisfeitos, com o sentimento de estarmos todos em uma grande festa: emoção da festa da alfabetização iniciada neles, emoção da festa da alfabetização continuada em nós.
Na verdade, a maior festa que eu já fui. Não havia fartura de comida ou de bebida. Havia o suficiente para festejarmos a noite. Havia um início de projeto a ser continuado por eles e perseguido por nós.
Havia comida, café quente, um pequeno rádio tocando forró e muita solidariedade, muita conversa boa. A fartura foi de alegria, de sentimento de estar fazendo o melhor, fartura de comemoração pelo trabalho feito, pela organização da festa, pelo doce diferente (o brigadeiro de chocolate) que nem sempre tinham na mesa e naquela noite de festa era possível ter. Fartura de pessoas. Foi isso que eu senti.
Quis repartir a história dessa festa com mais pessoas. Para que a leiam e possam lembrar-se que, por vezes, estragamos muito...desperdiçamos muito sem fazer bom proveito do que temos.
Não só alimentos e bebidas, mas também ações, idéias, "muitas coisas" que desperdiçamos ao longo de nossas vidas. Ao chegar ao hotel, concluí que o professor fora muito humilde ao dizer que teríamos uma festa com um "monte de coisas" e que eu, ao ouvi-lo, havia pensado apenas em comidas e bebidas como as possíveis "coisas" da festa.
Ele estava certo, foi uma festa com muita coisa.
No fim da festa, que não acabou com o fim da comida (eles continuaram conversando, contando histórias, falando do professor, das aulas, do próximo semestre, de quem aprendeu mais, de que nem aprendeu ainda, quem já sabe ler a Bíblia, quem já ajuda os filhos com as tarefas da escola, quem já pensa em ir para a escola comum porque já não tem vergonha de nem saber o próprio nome), abraçei cada um deles.
Ao abraçá-los, cada um contava mais um pouquinho do filho, do pai, do amigo, da comadre. Do que cada um já consegue fazer com o que conseguem ler e escrever. E em cada abraço de despedida, eu ia me sentindo com mais pena. Não porque eu os estava deixando lá no interior do Nordeste brasileiro. Mas pena de mim porque tinha que vir embora deles.
Este não pretende ser apenas mais um relato de confraternização entre alfabetizadores, alunos, familiares, coordenadores e pessoas do local onde atuamos com o Programa Alfabetização Solidária. Este relato, na verdade, é o relato de uma festa de alfabetização, experiência verdadeira a ser repartida com muitas pessoas,principalmente aqueles que acreditam na possibilidade de um país alfabetizado e letrado.
Os resultados que vimos obtendo com nosso trabalho vão muito além dos resultados numéricos sobre pessoas alfabetizadas em cada Módulo. Os resultados a que nos referimos são os de caráter pessoal e social, aqueles que podem ser usados na vida de cada um de nossos alunos, no dia-a-dia de suas ruas, nas feiras, nos encontros familiares, nos rituais religiosos, nas visitas a mercados e farmácias, enfim, nas necessidades de cada um exercitar sua leitura e sua escrita no cotidiano mesmo. Esses são resultados relatados por eles mesmos na festa que organizaram.
Como conclusão: Alfabetizar vale a pena...!
Muito mais para eles do que para nós mas como é bom nos sabermos participantes desta festa.
Para mim e para eles, sem dúvida, uma festa de alfabetização!

Nenhum comentário: